Gisella Werneck Lorenzi*
Até 1900 – Final do Império e início da Republica
Santa Casa de Misericórdia
Não se tem registro, até o início do século XX, do desenvolvimento de
políticas sociais desenhadas pelo Estado brasileiro. As populações
economicamente carentes eram entregues aos cuidados da Igreja Católica
através de algumas instituições, entre elas as Santas Casas de
Misericórdia. No Brasil, a primeira Santa Casa foi fundada no ano de
1543, na Capitania de São Vicente (Vila de Santos). Estas instituições
atuavam tanto com os doentes quanto com os órfãos e desprovidos. O
sistema da Roda das Santas Casas, vindo da Europa no século XVIII, tinha
o objetivo de amparar as crianças abandonadas e de recolher donativos.
A Roda constituía-se de um cilindro oco de madeira
que girava em torno do próprio eixo com uma abertura em uma das faces,
alocada em um tipo de janela onde eram colocados os bebês. A estrutura
física da Roda privilegiava o anonimato das mães, que não podiam, pelos
padrões da época, assumir publicamente a condição de mães solteiras.
Mais tarde em 1927 o Código de Menores proibiu o sistema das Rodas, de
modo a que os bebês fossem entregues diretamente a pessoas destas
entidades, mesmo que o anonimato dos pais fosse garantido. O registro da
criança era uma outra obrigatoriedade deste novo procedimento.
Ensino e trabalho
O ensino obrigatório foi regulamentado em 1854. No entanto, a lei não se
aplicava universalmente, já que ao escravo não havia esta garantia. O
acesso era negado também àqueles que padecessem de moléstias contagiosas
e aos que não tivessem sido vacinados. Estas restrições atingiam as
crianças vindas de famílias que não tinham pleno acesso ao sistema de
saúde, o que faz pensar sobre a influência da acessibilidade e qualidade
de uma política social sobre a outra ou como vemos aqui, de como a não
cobertura da saúde restringiu o acesso das crianças à escola,
propiciando uma dupla exclusão aos direitos sociais.
Com relação à regulamentação do trabalho, houve um
decreto em 1891 - Decreto nº 1.313 – que estipulava em 12 anos a idade
mínima para se trabalhar. Segundo alguns autores, no entanto, tal
determinação não se fazia valer na prática, pois as indústrias nascentes
e a agricultura contavam com a mão de obra infantil.
1900 a 1930 – A República
Lutas sociais
O início do século XX foi marcado, no Brasil pelo surgimento das lutas
sociais do proletariado nascente. Liderado por trabalhadores urbanos, o
Comitê de Defesa Proletária foi criado durante a greve geral de 1917. O
Comitê reivindicava, entre outras coisas, a proibição do trabalho de
menores de 14 anos e a abolição do trabalho noturno de mulheres e de
menores de 18 anos.
Em 1923, foi criado o Juizado de Menores, tendo Mello
Mattos como o primeiro Juiz de Menores da América Latina. No ano de
1927, foi promulgado o primeiro documento legal para a população menor
de 18 anos: o Código de Menores, que ficou popularmente conhecido como
Código Mello Mattos.
O Código de Menores era endereçado não a todas as
crianças, mas apenas àquelas tidas como estando em "situação irregular" .
O código definia, já em seu Artigo 1º, a quem a lei se aplicava:
" O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou
delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela
autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção contidas
neste Codigo." (grafia original) Código de Menores - Decreto N. 17.943 A
– de 12 de outubro de 1927
O Código de Menores visava estabelecer diretrizes
claras para o trato da infância e juventude excluídas, regulamentando
questões como trabalho infantil, tutela e pátrio poder, delinqüência e
liberdade vigiada. O Código de Menores revestia a figura do juiz de
grande poder, sendo que o destino de muitas crianças e adolescentes
ficava a mercê do julgamento e da ética do juiz.
1930 a 1945 – Estado Novo
Programas assistencialistas
A revolução de 30 representou a derrubada das oligarquias rurais do
poder político. O desenvolvimento de um projeto político para o país
era, na visão de estudiosos, ausente neste momento, por não haver um
grupo social legítimo que o pudesse idealizar e realizar. Isto acabou
por permitir o surgimento de um Estado autoritário com características
corporativas, que fazia das políticas sociais o instrumento de
incorporação das populações trabalhadoras urbanas ao projeto nacional do
período.
O Estado Novo, como ficou conhecido este período,
vigorou entre 1937 e 1945, sendo marcado no campo social pela instalação
do aparato executor das políticas sociais no país. Dentre elas
destaca-se a legislação trabalhista, a obrigatoriedade do ensino e a
cobertura previdenciária associada à inserção profissional, alvo de
críticas por seu caráter não universal, configurando uma espécie de
cidadania regulada – restrito aos que tinham carteira assinada.
O sufrágio universal foi reconhecido nesta época como um direito político de indivíduos, excluídos até então, como as mulheres.
Em 1942, período considerado especialmente
autoritário do Estado Novo, foi criado o Serviço de Assistência ao Menor
- SAM. Tratava-se de um órgão do Ministério da Justiça e que funcionava
como um equivalente do sistema Penitenciário para a população menor de
idade. Sua orientação era correcional-repressiva. O sistema previa
atendimento diferente para o adolescente autor de ato infracional e para
o menor carente e abandonado, de acordo com a tabela abaixo:
Atendimento no Serviço de Assistência ao Menor
Situação irregular |
Adolescente autor de ato infracional |
Menor carente e abandonado |
Tipo de Atendimento |
Internatos: reformatórios e casas de correção |
Patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos |
Além do SAM, algumas entidades federais de atenção à
criança e ao adolescente ligadas à figura da primeira dama foram
criadas. Alguns destes programas visavam o campo do trabalho, sendo
todos eles atravessados pela prática assistencilalista:
- LBA - Legião Brasileira de Assistência - agência nacional de
assistência social criada por Dona Darcy Vargas. Intitulada
originalmente de Legião de Caridade Darcy Vargas, a instituição era
voltada primeiramente ao atendimento de crianças órfãs da guerra. Mais
tarde expandiu seu atendimento.
- Casa do Pequeno Jornaleiro: programa de apoio a jovens de baixa
renda baseado no trabalho informal e no apoio assistencial e
sócio-educativo.
- Casa do Pequeno Lavrador: programa de assistência e aprendizagem rural para crianças e adolescentes filhos de camponeses.
- Casa do Pequeno trabalhador: Programa de capacitação e
encaminhamento ao trabalho de crianças e adolescentes urbanos de baixa
renda. Casa das Meninas: programa de apoio assistencial e
sócio-educativo a adolescentes do sexo feminino com problemas de
conduta.
1945 a 1964 - Redemocratização
Abertura política e organização social
O Governo Vargas é deposto em 1945 e uma nova constituição é promulgada
em 1946, a quarta Constituição do país. De caráter liberal, esta
constituição simbolizou a volta das instituições democráticas.
Restabeleceu a independência entre os 3 Poderes (Executivo, Legislativo e
Judiciário), trouxe de volta o pluripartidarismo, a eleição direta para
presidente (com mandato de 5 anos), a liberdade sindical e o direito de
greve. Acabou também com a censura e a pena de morte.
Em 1950, foi instalado o primeiro escritório do
UNICEF no Brasil, em João Pessoa, na Paraíba. O primeiro projeto
realizado no Brasil destinou-se às iniciativas de proteção à saúde da
criança e da gestante em alguns estados do nordeste do país.
Do ponto de vista da organização popular, o período
entre 45 e 64 foi marcado pela co-existência de duas tendências: o
aprofundamento das conquistas sociais em relação à população de baixa
renda e o controle da mobilização e organização, que começa a surgir
paulatinamente nas comunidades.
O SAM passa a ser considerado, perante a opinião
pública, repressivo, desumanizante e conhecido como "universidade do
crime". O início da década de 60 foi marcado, portanto, por uma
sociedade civil mais bem organizada, e um cenário internacional
polarizado pela guerra fria, em que parecia ser necessário estar de um
ou outro lado.
1964 a 1979 – Regime Militar
FUNABEM e Código de 79
O Golpe Militar de 64 posicionou o Brasil, frente ao panorama
internacional da guerra fria, em linha com os países capitalistas. Uma
ditadura militar foi instituída, interrompendo por mais de 20 anos o
avanço da democracia no país. Em 1967, houve a elaboração de uma nova
Constituição, que estabeleceu diferentes diretrizes para a vida civil. A
presença autoritária do estado tornou-se uma realidade. Restrição à
liberdade de opinião e expressão; recuos no campo dos direitos sociais e
instituição dos Atos Institucionais que permitiam punições, exclusões e
marginalizações políticas eram algumas das medidas desta nova ordem
trazidas pelo golpe. Como forma de conferir normalidade a está prática
de exceção foi promulgada em 1967, nova constituição Brasileira.
O período dos governos militares foi pautado, para a
área da infância, por dois documentos significativos e indicadores da
visão vigente:
- A Lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513 de 1/12/64)
- O Código de Menores de 79 (Lei 6697 de 10/10/79)
A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor tinha como
objetivo formular e implantar a Política Nacional do Bem Estar do Menor,
herdando do SAM prédio e pessoal e, com isso, toda a sua cultura
organizacional. A FUNABEM propunha-se a ser a grande instituição de
assistência à infância, cuja linha de ação tinha na internação, tanto
dos abandonados e carentes como dos infratores, seu principal foco.
O Código de Menores de 1979 constituiu-se em uma
revisão do Código de Menores de 27, não rompendo, no entanto, com sua
linha principal de arbitrariedade, assistencialismo e repressão junto à
população infanto-juvenil. Esta lei introduziu o conceito de "menor em
situação irregular", que reunia o conjunto de meninos e meninas que
estavam dentro do que alguns autores denominam infância em "perigo" e
infância "perigosa". Esta população era colocada como objeto potencial
da administração da Justiça de Menores. É interessante que o termo
"autoridade judiciária" aparece no Código de Menores de 1979 e na Lei da
Fundação do Bem Estar do Menor, respectivamente, 75 e 81 vezes,
conferindo a esta figura poderes ilimitados quanto ao tratamento e
destino desta população.
Estudos
A partir de meados da década de 70, começou a surgir, por parte de
alguns pesquisadores acadêmicos, interesse em se estudar a população em
situação de risco, especificamente a situação da criança de rua e o
chamado delinqüente juvenil. A importância destes trabalhos nos dias de
hoje é grande pelo ineditismo e pioneirismo do tema. Trazer a
problemática da infância e adolescência para dentro dos muros da
universidade, em plena ditadura militar, apresentou-se como uma forma de
colocar em discussão políticas públicas e direitos humanos.
Destacam-se os seguintes trabalhos, que ser tornaram referência bibliográfica:
- “A criança, o adolescente, a cidade”: pesquisa realizada pelo CEBRAP- São Paulo em 1974
- “Menino de rua: expectativas e valores de menores marginalizados
em São Paulo”: pesquisa realizada por Rosa Maria Fischer em 1979
- “Condições de reintegração psico-social do delinqüente juvenil;
estudo de caso na Grande São Paulo”: tese de mestrado de Virginia P.
Hollaender pela PUC/SP em 1979
- “O Dilema do Decente Malandro” tese de mestrado defendida por
Maria Lucia Violante em 1981, publicado posteriormente pela editora
Cortez.
Década de 80 – Abertura Política e nova Redemocratização
Bases para o Estatuto
A década de 80 permitiu que a abertura democrática se tornasse uma
realidade. Isto se materializou com a promulgação, em 1988, da
Constituição Federal, considerada a Constituição Cidadã.
Para os movimentos sociais pela infância brasileira, a década de 80
representou também importantes e decisivas conquistas. A organização dos
grupos em torno do tema da infância era basicamente de dois tipos: os
menoristas e os estatutistas. Os primeiros defendiam a manutenção do
Código de Menores, que se propunha a regulamentar a situação das
crianças e adolescentes que estivessem em situação irregular (Doutrina
da Situação Irregular). Já os estatutistas defendiam uma grande mudança
no código, instituindo novos e amplos direitos às crianças e aos
adolescentes, que passariam a ser sujeito de direitos e a contar com uma
Política de Proteção Integral. O grupo dos estatutistas era articulado,
tendo representação e capacidade de atuação importantes.
Antonio Carlos Gomes da Costa relata algumas das
estratégias utilizadas por este grupo para a incorporação da nova visão à
nova Constituição: "Para conseguir colocar os direitos da criança e do
adolescente na Carta Constitucional, tornava-se necessário começar a
trabalhar, antes mesmo das eleições parlamentares constituintes, no
sentido de levar os candidatos a assumirem compromissos públicos com a
causa dos direitos da infância e adolescência".
Formada em 1987, a Assembléia Nacional Constituinte,
presidida pelo deputado Ulysses Guimarães, membro do PMDB, era composta
por 559 congressistas e durou 18 meses. Em 5 de outubro de 1988, foi
então promulgada a Constituição Brasileira que, marcada por avanços na
área social, introduz um novo modelo de gestão das políticas sociais -
que conta com a participação ativa das comunidades através dos conselhos
deliberativos e consultivos.
Na Assembléia Constituinte organizou-se um grupo de
trabalho comprometido com o tema da criança e do adolescente, cujo
resultado concretizou-se no artigo 227, que introduz conteúdo e enfoque
próprios da Doutrina de Proteção Integral da Organização das Nações
Unidas, trazendo os avanços da normativa internacional para a população
infanto-juvenil brasileira. Este artigo garantia às crianças e
adolescentes os direitos fundamentais de sobrevivência, desenvolvimento
pessoal, social, integridade física, psicológica e moral, além de
protegê-los de forma especial, ou seja, através de dispositivos legais
diferenciados, contra negligência, maus tratos, violência, exploração,
crueldade e opressão.
Estavam lançadas, portanto, as bases do Estatuto da
Criança e do Adolescente. É interessante notar que a Comissão de Redação
do ECA teve representação de três grupos expressivos: o dos movimentos
da sociedade civil, o dos juristas (principalmente ligados ao Ministério
Público) e o de técnicos de órgãos governamentais (notadamente
funcionários da própria Funabem).
Muitas das entidades vindas dos movimentos da
sociedade civil surgiram em meados da década de 80 e tiveram uma
participação fundamental na construção deste arcabouço legal que temos
hoje. Como exemplos, destaca-se o Movimento Nacional dos Meninos e
Meninas de Rua (MNMMR), que surgiu em 1985 em São Bernardo do Campo, um
importante centro sindical do país, e a Pastoral da Criança, criada em
1983, em nome da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
envolvendo forte militância proveniente dos movimentos sociais da igreja
católica.
Década de 90 – Consolidando a Democracia
ECA e realidade
A promulgação do ECA (Lei 8.069/90) ocorreu em 13 de Julho de 1990,
consolidando uma grande conquista da sociedade brasileira: a produção de
um documento de direitos humanos que contempla o que há de mais
avançado na normativa internacional em respeito aos direitos da
população infanto-juvenil. Este novo documento altera significativamente
as possibilidades de uma intervenção arbitrária do Estado na vida de
crianças e jovens. Como exemplo disto pode-se citar a restrição que o
ECA impõe à medida de internação, aplicando-a como último recurso,
restrito aos casos de cometimento de ato infracional.
Desde a promulgação do ECA, um grande esforço para a
sua implementação vem sido feito nos âmbitos governamental e
não–governamental. A crescente participação do terceiro setor nas
políticas sociais, fato que ocorre com evidência a partir de 1990, é
particularmente forte na área da infância e da juventude. A constituição
dos conselhos dos direitos, uma das diretrizes da política de
atendimento apregoada na lei, determina que a formulação de políticas
para a infância e a juventude deve vir de um grupo formado
paritariamente por membros representantes de organizações da sociedade
civil e membros representantes das instituições governamentais.
No entanto, a implementação integral do ECA ainda
representa um desafio para todos aqueles envolvidos e comprometidos com a
garantia dos direitos da população infanto-juvenil. Antonio Carlos
Gomes da Costa, em um texto intitulado “O Desfio da Implementação do
Estatuto da Criança e do Adolescente”, denomina de salto triplo os três
pulos necessários à efetiva implementação da lei. São eles:
- Mudanças no panorama legal: os municípios e estados precisam se
adaptar à nova realidade legal. Muitos deles ainda não contam, em suas
leis municipais, com os conselhos e fundos para a infância.
- Ordenamento e reordenamento institucional: colocar em prática as
novas institucionalidades trazidas pelo ECA: conselhos dos direitos,
conselhos tutelares, fundos, instituições que executam as medidas
sócio-educativas e articulação das redes locais de proteção integral.
- Melhoria nas formas de atenção direita: É preciso aqui “mudar a
maneira de ver, entender e agir” dos profissionais que trabalham
diretamente com as crianças e adolescentes”. Estes profissionais são
historicamente marcados pelas práticas assistencialistas, corretivas e
muitas vezes repressoras, presentes por longo tempo na historia das
práticas sociais do Brasil.
Com isto, há ainda um longo caminho a ser percorrido antes que se atinja
um estado de garantia plena de direitos com instituições sólidas e
mecanismos operantes. No entanto, pode-se dizer com tranqüilidade que
avanços importantes vêm ocorrendo nos últimos anos, e que isto tem um
valor ainda mais significativo se contextualizado a partir da própria
história brasileira, uma história atravessada mais pelo autoritarismo
que pelo fortalecimento de instituições democráticas. Neste sentido, a
luta pelos direitos humanos no Brasil é ainda uma luta em curso,
merecedora da perseverança e obstinação de todos os que acreditam que um
mundo melhor para todos é possível.
Bibliografia:
COSTA, Antonio Carlos Gomes. É possível mudar: a criança, o adolescente e a família na política social do município. Editora Malheiros, 1993.
COSTA, Antonio Carlos Gomes. De menor a cidadão: Notas para uma história do novo direito da infância e juventude no Brasil. Editora do Senado, 1993.
DEL PRIORE, Mary. História das Crianças no Brasil. Editora Contexto, 1999.
*Gisella Lorenzi é psicóloga e uma das coordenadoras do Portal Pró-Menino.