Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária
Reflexões iniciais sobre os conceitos (e os preconceitos) que definem suas ações: a família em foco
Silvia Losacco*
O artigo "Órfãos de pais vivos" do Jornal Correio Braziliense em 09 de janeiro de 2002 foi o estopim para o compartilhar das indignações de um grupo de pessoas que se propôs a encontrar as formas de enfrentamento para os abusos intoleráveis da diversidade de violências sofridas por crianças e por adolescentes no dia-a-dia; violências cometidas por pessoas ou por instituições, resultado de negligência e/ou abandono, de abuso sexual, de agressões físicas e/ou psicológicas; do rompimento do vínculo familiar e da institucionalização por motivo de pobreza.
Quando falamos "família", estamos nos referindo a que? Será que todos, pessoas e instituições (judiciário, executivo, legislativo e sociedade civil organizada), ao utilizarem esse conceito querem expressar a mesma coisa? Afinal, o que é família?
“Corrigir o espaço real e criar nova ordem;
Não diga nunca ‘isto é natural’.
Perceba o horrível atrás do que já se tornou familiar.
Sinta o que é intolerável no dia-a-dia que se aprendeu a suportar.
Inquiete-se diante do que se considera habitual.
Conheça a lei e aponte o abuso.
E, sempre que o abuso for encontrado,
Encontre o remédio!”
Bertolt Brecht
*Psicóloga psicodramatista, mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (1990) e doutorada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atua na área das políticas sociais e públicas para crianças, adolescentes, famílias e comunidade na formulação, coordenação, implantação, acompanhamento e avaliação de projetos, programas e políticas; e, na formação de profissionais que atuam na garantia dos direitos da criança e do adolescente. Dentre outros projetos para organismos internacionais e nacionais, foi consultora da SNPDCA - Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e o Adolescente e UNFPA para a elaboração do Relatório da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. Foi Pesquisadora convidada do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC-SP para a Cocoordenação do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, de 2003 a 2009. Atualmente é coordenadora geral do Projeto "Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes: Direitos Humanos e Justiça", financiado pela SDH/Conanda, com parceria da ABMP.
Os textos publicados na seção Colunistas são de responsabilidade dos autores e não exprimem necessariamente a visão do Portal Pró-Menino.
Silvia Losacco*
O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Criança e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, a partir de agora
designado pela sigla PNCFC, é resultado de um processo participativo de
elaboração conjunta, envolvendo representantes de todos os poderes e
esferas de governo, da sociedade civil organizada e de organismos
internacionais, os quais compuseram a Comissão Intersetorial que
elaborou os subsídios apresentados ao Conselho Nacional dos Direitos das
Crianças e Adolescentes - CONANDA e ao Conselho Nacional de Assistência
Social – CNAS. É um conjunto de diretrizes, socializadas,
principalmente, por meio da expressão escrita; texto embasado por
instrumentos legais e definições conceituais.
Os conceitos (também) pertinentes ao PNCFC são palavras tomadas como
movimentos que se enriquecem nas práticas diárias, não devendo
limitar-se a significados estanques. É preciso compreender o significado
de cada deles no seu determinado contexto histórico. A partir dos novos
significados construídos, as práticas se renovam e ganham vida. Por
vezes, a não reflexão contextualizada dos conceitos que norteiam as
práticas cotidianas acarreta em preconceitos que paralisam, no tempo e
no espaço, as conquistas necessárias que determinam as garantias dos
direitos de cada um dos sujeitos, de núcleos familiares, das
comunidades, das sociedades e da humanidade.
Sucinto resgate sócio histórico do PNCFCO artigo "Órfãos de pais vivos" do Jornal Correio Braziliense em 09 de janeiro de 2002 foi o estopim para o compartilhar das indignações de um grupo de pessoas que se propôs a encontrar as formas de enfrentamento para os abusos intoleráveis da diversidade de violências sofridas por crianças e por adolescentes no dia-a-dia; violências cometidas por pessoas ou por instituições, resultado de negligência e/ou abandono, de abuso sexual, de agressões físicas e/ou psicológicas; do rompimento do vínculo familiar e da institucionalização por motivo de pobreza.
Do esforço coletivo nasceu a Caravana da Cidadania. Outras ações
decorreram deste movimento catalisador: formação do Comitê de Abrigos em
setembro de 2002; formação de uma Comissão Intersetorial (de 10/2004 a
04/2005); Consulta Pública (06 e 07 de 2006); primeira Assembléia
Conjunta entre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional da Assistência Social (CNAS)
em 13 de dezembro de 2006, momento de aprovação do PNCFC; Conferência
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente de 2007, quando o
Plano fez parte dos temas de debates e das resoluções.
Marco nas políticas públicas no Brasil enquanto política de Estado, o
PNCFC visa balizar a qualificação de profissionais para os
enfrentamentos necessários, ao mesmo tempo em que promove o rompimento
com a cultura da institucionalização. Sua base é o fortalecimento e a
manutenção dos vínculos familiares e comunitários fundamentais na
estruturação e no desempenho do papel de sujeitos e cidadãos das
crianças e dos adolescentes. Para tanto, suas ações estão diretamente
relacionadas ao investimento nas políticas públicas de atenção à
família.
Dentre as nove diretrizes que compõem o conjunto de ações que são
propostas para serem desenvolvidas no período de 2007 - 20015 estão:
• Centralidade da família nas políticas públicas;
• Primazia da responsabilidade do Estado no fomento
de políticas integradas de apoio à família;
• Reconhecimento das competências da família na sua
organização interna e na superação de dificuldades.
Assim, vale aqui refletirmos sobre o conceito "Família".
Quando falamos "família", estamos nos referindo a que? Será que todos, pessoas e instituições (judiciário, executivo, legislativo e sociedade civil organizada), ao utilizarem esse conceito querem expressar a mesma coisa? Afinal, o que é família?
Na atualidade, a família deixa de ser aquela constituída unicamente
por meio do casamento formal. Hoje, diversifica-se e abrange as unidades
familiares formadas seja pelo casamento civil ou religioso, seja pela
união estável; seja por grupos formados por qualquer um dos pais ou
ascendentes e seus filhos, netos ou sobrinhos; seja por mãe ou pai
solteiros; seja pela união estável de homossexuais. Acaba, assim,
qualquer discriminação relacionada à estrutura das famílias e se
estabelece a igualdade entre os filhos legítimos, naturais ou adotivos.
Apesar de vermos hoje a configuração familiar modificar-se
profundamente, o imaginário social (ou o que na nomenclatura acadêmica é
chamado de "representação social") de família ainda é o modelo
estrutural de família burguesa como norma e não como um modelo
construído historicamente, aceitando se e perpetuando-se os valores, as
regras, as crenças e os padrões emocionais impressos nesta
representação. As interpretações sobre as novas configurações e sobre as
inter-relações entre aqueles que a compõem ainda são feitas no contexto
estrutural da família monoparental. Quando se apresenta diferente desta
referência, ainda é denominada como “desestruturada” ou “incompleta”,
fato considerado a gênese de todo e qualquer problema de ordem emocional
e/ou comportamental. Mesmo com todos os avanços, ainda é vigente a
confusão entre casamento e família; entre casamento e parceria sexual;
entre parceria sexual e vínculo afetivo.
Aos que compõem uma configuração “diferente”, por desviarem das
normas instituídas, atribuem-se discursos de caráter estigmatizantes que
expressam incompetência ou menos valia. Não é raro compor o discurso
acadêmico, político, jurídico ou da mídia o repúdio da conduta feminina
em ter uma prole numerosa.
Vale salientar que a família, como organismo natural, não acaba e,
enquanto organismo jurídico requer uma nova representação; mesmo com as
últimas alterações no Código Civil.
Seja qual for a sua configuração, as estruturas familiares reproduzem
as dinâmicas sócio-históricas existentes. Assim, movimentos da divisão
social do trabalho, modificações nas relações entre trabalhador e
empregador e o desemprego estão presentes e influenciam o sentido e a
direção das famílias.
Recebendo o impacto das transformações advindas do contexto
socioeconômico em que se insere, a família, como elemento social, é
motivo de constantes alterações,
(...) algumas mudanças são facilmente reconhecidas.
A mudança central do papel da mulher, do controle da natalidade, os
novos laços conjugais e as novas relações familiares, (...) as questões
geracionais (jovens e velhos nas famílias), a nova paternidade (...)
mudanças [que] implicam em ganhos e custos emocionais e sociais (Vitale,
2003).
Essas alterações incidem sobre a qualidade da apreensão, da função e
do desempenho dos papéis intra e extranúcleo familiar. A complexidade
dessa estruturação, criando diferentes organizações e modos de
relacionamentos familiares, nos obriga a desenvolver uma capacidade para
aceitar a família tal como ela se constitui em face dos desafios que
enfrentou, em lugar de procurar nela o modelo que temos como
representação.
A efetivação da visão de mundo impressa no PNCFC no contexto vigente e
o saber necessário de quem realmente compõe uma determinada rede
familiar requer perguntar à criança e/ou adolescente: com quem se sente
protegido?; quem são os que compõem seu vínculo afetivo?; qual a sua
referência de pertencimento?. Essa escuta poderá estabelecer junto com a
criança e o adolescente as novas formas de enfrentamento para os
desafios da não institucionalização.
Não diga nunca ‘isto é natural’.
Perceba o horrível atrás do que já se tornou familiar.
Sinta o que é intolerável no dia-a-dia que se aprendeu a suportar.
Inquiete-se diante do que se considera habitual.
Conheça a lei e aponte o abuso.
E, sempre que o abuso for encontrado,
Encontre o remédio!”
Bertolt Brecht
*Psicóloga psicodramatista, mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (1990) e doutorada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Atua na área das políticas sociais e públicas para crianças, adolescentes, famílias e comunidade na formulação, coordenação, implantação, acompanhamento e avaliação de projetos, programas e políticas; e, na formação de profissionais que atuam na garantia dos direitos da criança e do adolescente. Dentre outros projetos para organismos internacionais e nacionais, foi consultora da SNPDCA - Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e o Adolescente e UNFPA para a elaboração do Relatório da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. Foi Pesquisadora convidada do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da PUC-SP para a Cocoordenação do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, de 2003 a 2009. Atualmente é coordenadora geral do Projeto "Convivência Familiar e Comunitária de Crianças e Adolescentes: Direitos Humanos e Justiça", financiado pela SDH/Conanda, com parceria da ABMP.
Os textos publicados na seção Colunistas são de responsabilidade dos autores e não exprimem necessariamente a visão do Portal Pró-Menino.